Leitura
Contradição
Este livrinho de poesia era vendido aos colegas pelo autor, o piauiense de Parnaíba, Roberto Broder, no intervalo das aulas.
Era 1967, estávamos no primeiro ano, se não me falha a memória, segundo semestre.
A aula seguinte seria, acho, de cálculo infinitesimal ou vetorial. O Roberto entrega um dos livrinhos ao professor que o folheia e vai iniciar a aula. O Roberto ou alguém, eu não prestava muita atenção até então, pergunta o que o professor achou das poesias que lera ao folhear e este responde do alto de sua ignorância e grosseria:
"é uma merda"
Imediatamente, sem hesitar, o Broder que deve ter uns 1,80m grita: MERDA É QUEM LÊ
Confusão, turma do deixa disso, e a partir dali fica o apelido do Broder: POETA.
Alguns gostaram das poesias, tanto que guardaram o livrinho até hoje, 01nov02, e é este livrinho que inaugura este ítem do site www.eeufrj1970.cjb.net (ESTÓRIAS). Nem se sabe se o Broder ainda tem um exemplar.
A capa é uma cópia em "scanner" e o texto, embora redatilografado para economizar espaço na memória do "site", é praticamente uma fotocópia, respeitando a paginação, os espaços, estilos de datilografar tudo em minúsculas. Foram mantidos até êrros de datilografia e ausência de numeração das páginas. O formato do "livrinho" também é o original.
A presença do Roberto Broder entre nós, nos fez mais convictos de que o engenheiro pode gostar de números mas também tem cultura geral, gosta do que é bonito e tem sentimentos.
Afinal, só os idiotas se enclausuram em seu mundinho seja matemático seja do setor que for.
Mas eram tempos de "patrulhamento" e quem não fosse "enturmado", quem não fosse das "esquerdas", era considerado alienado ou sua arte considerada menor.
Quantos de nós escreveram seus poeminhas que nunca tiveram coragem de mostrar, quanto mais publicar....
O Roberto Broder foi o único.
Valeu Broder!
Rio, 01nov02
Miguel Fernández
Lições (por Tarcila Broder)
Textos em homenagem ao meu pai
Lição n.º 1 - Coragem
Quando criança, eu era a grande companheira de aventuras do meu pai. Minhas primeiras memórias de vida incluem ele me colocando em cima de um cavalo pra eu sentir a sensação de cavalgar. Assim, logo me acostumei com esses bichos e aprendi a amá-los.
Anos mais tarde, passamos muitos meses viajando para uma Ilha distante no Delta do Parnaíba. Lá, pegávamos um cavalo até a sede, onde ele orientava os trabalhadores na obra de uma casa, no meio do nada.
A cavalo íamos até a praia que ficava um pouco distante. Eram 10 km de praia deserta no coração do Delta. Quando chegava na areia mais fofa, banhada pelas águas do mar, eu deixava o cavalo disparar para aproveitar o galope. Quando ele me via fazendo algo perigoso, ele olhava com um olhar mais sério e às vezes até soltava um "cuidado", mas nunca pedia para eu parar, ele confiava no meu discernimento. E eu achava que era possível controlar.
Meu pai não tinha muitos medos. Algumas vezes, o motor do barco parava e a gente ficava à deriva por alguns minutos até que o barqueiro conseguisse religá-lo. O barco balançava muito, mas meu pai continuava tranquilo. Da mesma forma que ficava tranquilo quando pegávamos uma turbulência mais forte no avião. Ele dizia que tinha coisas que estavam fora do nosso controle e que não adiantaria se preocupar.
Assim, aprendi a ter coragem.
Lição n.º 2 - Esforço
Quem via minha casa imponente, decorada com esculturas extravagantes e quadros gigantescos, devia pensar que eu tinha tudo que uma criança da minha idade desejava ter. De fato, tive uma infância muito privilegiada, com brinquedos, viagens e conforto, mas o que eu queria mesmo era ter um cavalo.
Meu pai não costumava dar as coisas assim facilmente, "de mão beijada", ele gostava de ver um esforço. E fazia questão que eu transitasse e convivesse com tantas outras realidades, para que soubesse dar valor ao que eu tinha.
Certa vez, cheguei pra ele e pedi: "Pai, me dá um cavalo?" Ele então pegou um livro na estante e me mostrou um famoso poema indianista de Gonçalves Dias: I-Juca Pirama. Lançou o seguinte desafio: "Se você recitar esse poema sem olhar para o livro eu te dou o cavalo".
Não sei quantas semanas passei estudando aquele poema que ocupava 9 páginas do volume 3 do "Novo Tesouro da Juventude" que tínhamos em casa, mas um dia eu finalmente me senti pronta e o chamei para o recital.
É bem provável que eu tenha omitido algumas estrofes e me confundido em tantas outras, mas ter visto meu empenho fez meu pai aplaudir ao final e dizer que me daria o tão sonhado prêmio.
Tempos depois, ele me levou na fazenda para ver meu cavalo: um potrinho, que tivemos que cuidar e esperar uns 2 anos para montar.
Assim, aprendi sobre esforço.
Até hoje me lembro do poema e da parte que meu pai costumava recitar:
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante,
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Lição n.º 3 - Autenticidade
Meu pai era muito bem humorado, muitas vezes um tipo de humor quase infantil, mas, em outras, bem ácido. Ele detestava formalidades. Fosse no cafezinho do Extra, fosse em solenidades, procurava logo um motivo para fazer uma piada ou pra contar uma história, daquelas de enrubescer a face até dos mais expansivos.
Confesso que, muitas vezes, eu me pegava "rezando" para ele não soltar alguma bobagem, que chocava alguns e fazia outros gargalharem. Quando a gente é adolescente, a gente se preocupa mais em manter a pose.
Certa vez, em um evento em família, um parente muito católico perguntou a ele: Roberto, qual é a sua congregação? Ele respondeu sem pestanejar: "Sou judeu macumbeiro", provocando uma risada nervosa seguida de um silencio constrangedor.
Não era de todo mentira, meu pai tinha bastante interesse pelas religiões africanas e também pelo judaísmo, religião de meu avô. Gostava de estudar o assunto e de entender o seu funcionamento, mas não chegava a frequentar nem uma e nem a outra.
Quando viajava pelo mundo, fazia questão de conhecer as diferentes culturas, entrava em igrejas, mesquitas, sinagogas e templos budistas, gostava da experiência. Foi ele que me levou para ver uma Gira e eu que o levei para assistir a um Bar mitzvah.
Só muito tempo depois percebi que esse era o jeito que ele tinha de separar as amizades. Preferia conviver com pessoas mais bem humoradas do que com aquelas que se levavam muito a sério.
Quem gostava dele de verdade, gostava do jeito que ele era e não o julgava pelas coisas que ele falava ou fazia.
Assim, entendi a importância de sermos autênticos.
Lição n.º 4 - Persistência (O Elementar de Iquitos)
Quando criança, meu pai ouviu algo que o marcou pela vida toda: "fulano é tão inteligente que possui até o curso Elementar de Iquitos".
Ele usava muito essa expressão para elogiar a gente. Se tirava uma nota alta ou dizia uma coisa sábia, ele logo falava "Muito bem, parece até que tem o Elementar de Iquitos". Eu achava isso engraçado, mas não tinha ideia de que ele planejava mesmo obter esse "diploma" um dia.
Há alguns anos, ele me ligou para avisar que estava indo para Iquitos. Numa viagem que envolvia pegar uns três aviões e mais 9 horas de lancha pela Amazônia Peruana, ele finalmente desembarcou na cidade.
Chegando lá, descobriu que ninguém nunca nem tinha ouvido falar dessa história. Diante da frustração, ele pensou, pensou e decidiu ir numa gráfica local para pedir que criassem o diploma para ele.
Quem assinou foi o próprio designer se passando por diretor, mas é claro que meu pai, mesmo que por alguns minutos, jurava, de pés juntos, que tinha feito a prova.
Pronto, Roberto Broder era tão inteligente que tinha até o Elementar de Iquitos.
Lição n.º 5 - Celebração (Cordel Judaico)
Eu vim aqui narrar um fato
Uma lição vou contar
De quando estava distante
E queria aproveitar
Minhas férias no Brasil
Para poder me casar
Ele ouviu com atenção
E deu logo a sugestão
Que casasse em Teresina
Diante de sua visão
E que iria ao cartório
Dar início à missão
Eu disse a ele tá certo
Veja o que vamos precisar
Pensando só nos documentos
Que teríamos que levar
Eu só não imaginava
O que ele iria preparar
Quando chego ao Piauí
Veio logo me contar
Que uma festa completa
Ele estava a organizar
E os convites já prontos
Eu haveria de entregar
Foi quando passei quatro dias
Correndo pra lá e pra cá
Procurando os endereços
Para as pessoas encontrar
Prazer, sou Tarcila Broder
E venho lhe convidar
Chegando lá para meu espanto
O cantor cantava hebraico
Os homens usavam quipá
Se não havia sinagoga
Tinha que improvisar
Nos conformes do Torá
Amigos que há muito não via
Parentes que não conhecia
Minha sogra e a avó de uma tia
Muita gente estava lá
Se não havia rabino
Meu pai assumia o lugar
Foi assim meu casamento
Que trouxe mais um ensinamento
De que de um jeito ou de outro
Nós devemos celebrar
E assim se finda o fato
Que acabo de contar
Lição n.º 6 - Desembaraço
A vida inteira eu cresci ciente de que meu pai era um gênio da solução de problemas. Ele, que tinha como profissão a Engenharia Civil e foi professor de estatística na Universidade Federal do Piauí, era, pra mim, um guru, que eu dividia com muitas pessoas de todas as posições e as classes sociais.
“Pergunta pro Broder” , “o Broder resolve”, eu ouvia constantemente. Era gente que o parava na rua ou que telefonava perguntando como fazia para solucionar uma questão. “Como é que eu faço pra me aposentar?, ”Como é que eu reforco as paredes?, ”Como é que mudo meu nome, enfim, todo tipo de situação.
Ele não cobrava por essas consultas e pegava para si as questões como se fossem suas. A sua maior alegria era quando ele conseguia resolver algo que parecia não ter solução. “Papai é safo", ele dizia.
Para ele, problemas só existiam no presente. “Primeiro tem que existir, pra depois você se preocupar”. Por mais que, às vezes, eu achasse um jeito inconsequente de lidar com as coisas, ele quase sempre tinha razão.
Aqui ou na China, literalmente, ele resolvia a questão. Viajou por mais de 50 países com esse mesmo desembaraço. Essa lição, eu ainda tento aprender ao lembrar das características dele:
Raciocínio rápido e lógico
Conhecimento de legislação
Muita informação
Gentileza e carisma
E bastante cara de pau
Quando ele estava na UTI, eu tive um sonho de que estávamos em guerra e um helicóptero inimigo vinha capturá-lo. Eu e meus irmãos tentávamos criar uma barreira para escondê-lo atrás de nós, mas ele saia de lá bem confiante dizendo: "Não se preocupem, deixa que eu resolvo”.
Tentava esquecer que ele mesmo dizia "só não tem jeito pra morte”.
Lição n.º 7 - Legado
Quando a pandemia começou pra valer, em março de 2020, estávamos a pouco mais de um mês de nos encontrar. Ele tinha passagem marcada para Porto, Portugal, onde se reuniria com colegas de faculdade para comemorar 50 anos de formados no Curso de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu iria, com as crianças, encontrá-lo. Nossos planos, assim como os de todo mundo, foram por água abaixo.
Seis meses antes disso, em agosto de 2019, eu havia ido ao Piauí, para aquilo que seria, sem eu saber, a nossa despedida presencial. Se eu pudesse ter escolhido uma despedida de meu pai, não seria nada diferente daqueles 10 dias que passamos juntos com as crianças.
Quando eu ia visitá-lo, ele fazia questão de realizar todos os meus desejos, que nada mais eram que tomar uma Cajuína bem gelada, comer siriguela, sapoti, sorvete de bacuri, doce de buriti e ir às praias em nossa cidade natal Parnaíba. Entre um passeio e outro, eu o seguia em sua rotina, acompanhando as obras, tomando café no shopping e no supermercado Extra, onde ele estava sempre cercado de amigos, muitos que também partiram nesse último ano.
Fomos a praias desertas de águas calmas e quentes, onde meus filhos puderam correr juntos sem limites pela primeira vez e criar memórias de seu querido avô. No final, a gente deu um abraço e ele me perguntou: "missão cumprida?" E eu disse que sim. Foi um passeio tão bom que eu fiz planos de passar uma temporada maior assim que fosse possível.
No nosso último dia, em Parnaíba, era um final de tarde, pegamos o carro só nós dois pra ir comprar sorvete, na mesma sorveteria que eu frequentava desde criança, a Sorveteria Araújo. Ele estendeu o passeio para cruzar a cidade se orgulhando do tanto que havia crescido e me mostrando os bairros que ele tinha dado início há mais de 40 anos. "Jardim Esperança fui eu que fiz", "Buganville ali também'', dizia ele. Então falou: "Eu só me arrependo de não ter colocado o nosso nome em tudo o que eu construí". Eu perguntei o motivo e ele explicou: “Porque o nome é a única coisa que a gente deixa".
Eu fiquei imaginando que, realmente, se você deixar um nome, seja de uma rua, de um bairro, de um projeto, vai ter sempre alguém que vai querer ir atrás de sua história, mas de nada adianta deixar um nome se as lembranças que você deixou não forem boas também.
O ano de 2020 foi um ano muito difícil para todos nós, mas para uma pessoa como meu pai foi simplesmente insuportável. Ele dizia que era aposentado, mas nunca parou de sonhar e realizar suas ideias. Nunca envelheceu. Estava sempre viajando pelo mundo e indo atrás de novas histórias para contar. Acordava cedo e sempre tinha um plano para o dia, com a mesma energia de uma criança encantada pela vida.
Mesmo com tantos limites impostos pelo maldito vírus, ele ainda conseguiu realizar em 2021 um projeto que leva o nome e divulga a incrível história de minha avó, Morena Broder. Eu, que não construo habitações, mas faço sites, resolvi registrar este site onde pretendo deixar gravadas essas e outras memórias sobre a incrível história de meu pai.
Lição n.º 1 - Tempo
Minha filha, assim como todos os outros três netos, adorava o avô e seu jeito brincalhão, quase implicante, de fazer graça igual criança. Puxava o chapéu e colocava em sua cabeça, contava histórias engraçadas, chamava-os de apelidos carinhosos. Tiê bebê, era ela pra ele. Tutu Terrível (uma referência de uma música que meu tio cantava pro meu pai quando ele era pequeno) era o Theo.
A última conversa da Tiê com meu pai foi na noite anterior à fatídica intubação, quando ele ainda estava bem e falante e fazia planos para o futuro. Ele disse: "Tiê, ano que vem, vou te levar para a Romênia para conhecer o castelo do Drácula". Ela, bem animada, respondeu "tá bom!"
Duas semanas mais tarde, quando ele fez sua passagem, Tiê me viu chorando e eu falei: "Tiê, mamãe está chorando porque o vovô partiu". Ela, em um primeiro momento, demonstrou entusiasmo e disse: “Partiu? Que bom!”, acreditando que isso significava que ele havia deixado o hospital. Então, eu expliquei: "Filha, ele partiu desse mundo".
Tiê perguntou: "Eu nunca mais vou vê-lo?" e eu falei: "Nesse mundo, não, mas ele será o seu anjo da guarda estará sempre com você". Ela mudou a expressão e bem séria disse: "Isso significa que nós devemos passar mais tempo com os nossos avós".
Esse é o primeiro registro de lições que aprendo com a minha filha, sem pressa de registrar os próximos, porque a vida precisa seguir seu fluxo e nós continuaremos aprendendo, seja com o passado, presente ou futuro.
E, sim, nós devemos, assim que for seguro, passar mais tempo com nossos pais e avós.
Um livro póstumo sobre a historia do Piauí será lançado
Roberto passou anos pesquisando a história do Piauí e deixou um livro escrito, ainda não editado. Temos a missão de publicar esse livro em sua homenagem.